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Os sentimentos por ti são como abismos sem fim nos quais ecoam incessantemente as palavras que nunca consigo dizer-te. Acutilantes, dilaceram-me a razão como trapos que caem do meu corpo, vulnerável, frágil, nu, exposto ao gáudio dos teus desígnios.
Não te ouço, os abismos pulsam, palpitam, ardem. Tento racionalizar este cataclismo interno que faz tremer cada célula do meu ser, mas o ruído ensurdecedor impede-me de compreender-te. Tudo me impele à fuga, e se eu sair antes de me ferires, e se eu não ouvir que não me queres, que não me amas?
E depois…? Por que é que olho sempre para trás? Tu e a porta, o último olhar, que nunca o é e é sempre o primeiro, com o qual desperto, com o qual retorno mesmo quando estou longe, e como escapar se a culpa insiste em me perseguir?
Ah, f0da-se, que o tempo não cura porra nenhuma. As lágrimas insistem em cair, e não tenho as tuas mãos para as secar.
Não me deixes ir! Quando o medo me quiser levar, dá-me a tua mão. Abraça-me, deixa-me sentir o calor do teu corpo onde os meus demónios se calam e minha jornada acaba. Onde não há mais dor, onde não há mais aflições.
Quando me abraças, entendo-te tão melhor.
O silêncio e a máquina de escrever azul. Bebo um copo de vinho para evitar um possível ataque de pânico, os tremores causados pela abstinência de delírios quase me fazem esquecer que do outro lado da janela há uma cidade doente. Evito esse ver através como evito ver noticiários. É preservação do lado de dentro. Sinto cada vez mais as fragilidades do meu mundo onírico, as utopias são-me raras, e as quimeras já não me ocorrem com a mesma frequência. Temo que para além de astigmatismo também possa ter miopia, sempre que me lembro fecho os olhos para respirar melhor.
Ah, eu amo-te tanto, mas se não fores como eu quero, não te amo mais. Idealizei-te e sonhei-te durante tanto tempo, que creio ser a pessoa mais indicada para poder dizer-te que a minha imagem de ti é francamente melhor do que tu. Vá adapta-te! Supera-te! Deixa que te hiperbolize. Vem de encontro ao meu desejo, deixa-te desses quereres e vontades próprias e vem viver o que sonhei para nós. Preenche as minhas necessidades com as tuas qualidades, guarda as coisas feias numa gaveta, junto com as peúgas rotas. Mas afinal quem é que quer amar os teus defeitos? Vá… prova a maçã que te ofereço e deixa-me ser o verme que te vai comer a carne, o veneno lento a corroer-te alma. Isto é amor, garanto-te! Deixa que me sacie com a tua existência. Não percebes que só eu te poderei fazer feliz? Eu, Eu, Eu, Eu que perniciosamente te idolatro, te contemplo, que fecho os olhos a essas partes obscuras de ti com que insistes viver e às quais chamas liberdade. Criatura vil larga o livro que lês, isso enche-te a cabeça de disparates, vem antes ler os meus SMS’s repletos de adjectivos fofinhos. Quero fechar-te na gaiola para proteger-te dos perigos que o céu esconde, à noite ouviremos juntos o pássaro azul que (por negligência) insistes em libertar todas as manhãs. Deixa-me salvar-te dessas tuas ideias de individualidade. Será que não percebes? Se insistes em ser tu nunca farás parte de algo verdadeiramente importante como EU. Ah, eu amo-te tanto, mas se não fores como eu quero, JURO, não te amo mais!
Não fico para dormir, tenho medo de acordar e de já não ser eu, de não te encontrar, de sermos apenas cinzas abandonadas pelo calor dos corpos, espalhadas sobre o branco dos lençóis sem nada para dizer. Tenho medo que se acabem as palavras e que o silêncio nos esmague contra o colchão, tenho medo de não me conseguir levantar, de não conseguir ir, de não saber sequer para onde ir.
Nunca ficava, pensava que despedir-me de noite, depois de despir-me de noite, era mais gracioso, mais misterioso, mais poético. Queria que me lembrasses assim, a sépia e efémera, queria deixar um espaço para a saudade, do meu corpo, do meu cheiro, da minha vivacidade nocturna. Queria que o meu beijo fosse o último, para que eu fosse o teu primeiro pensamento de manhã, talvez me continuasses a querer num movimento contínuo como se os nossos corpos nunca tivessem deixado de se amar.
Quando eu descia a velha escada de madeira da tua casa, ouvia guitarras espanholas e o lamento dos ciganos, Djelem, Djelem. Do outro lado da porta não havia ninguém, na rua deserta a lua longínqua de fria prata acompanhava os passos de quem nunca olha para trás, para não voltar a ser aquele lugar onde por breves momentos a paz e a guerra se harmonizavam no ritmo perfeito de dois parceiros de dança, e coexistiam sob a protecção da deusa como no meu quadro preferido do Rubens. Djelem, Djelem. Caminhei, Caminhei, rumo a quê?
Sorria ao imaginar-te na varanda, junto ao basílico e ao alecrim, a observares o movimento das mesmas costas onde desenhaste, instantes antes, um coração com os dedos, nessas horas vagas onde os meus medos se esqueciam de existir e eu me outorgava ao conforto dos teus braços. Nunca olhava para trás, com medo que não estivesses lá, por teres elegido uma qualquer outra banalidade em prol da nostalgia da despedida. Como poderia condenar-te, eu, aquela que ia pela noite sem coragem de ficar para ver nascer o dia.
As madrugadas morriam na ponta dos teus dedos enfraquecidos sobre o meu ventre, adormecíamos vencidos pelo cansaço do que chega devagar e se vai depressa demais, chegávamos com a urgência de um cigarro num dia de vento, talvez a idade um dia abrandasse a vida, para que o relógio acompanhasse a eternidade dos nossos momentos. Desperta-me meu amor antes que o dia me acorde numa vaga de realidade, e os sonhos sejam cinzas que à luz do dia voam pelas janelas que nos esquecemos de fechar. Era à noite que te amava mais, livre da agitação quotidiana, do excesso de claridade e dos passos inquietantes dos que correm no sentido contrário à vida. De noite não havia varinas, nem pássaros nos beirais, havia silêncio em vez de ardinas a apregoarem banalidades. Quem lê jornais não sabe ler, não como nós, nós que compreendemos o inquietante espaço entre palavras emudecidas por um ósculo, nós que sabemos que todos os plurais nasceram singulares e que a maior ambição de um plural é ser singular. À noite havia os gatos à procura de Deus nos telhados e as meninas a venderem ilusões aos descrentes num gesto de caridade que a vida não tinha tido para elas. Quão admirável é a solidão de quem faz do corpo altar de sacrifício para a alma?
O céu era mais bonito quando me davas a mão e as luzes da cidade se retiravam para deixar brilhar as estrelas, adormecia no teu peito embalada pelo ritmo cardíaco de quem fez do corpo palco de dança, era nesse momento, antes de adormecer, que acreditava que Deus existia, e lhe prometia num gesto de fé, amar-te em todos os tempos verbais. As ondas abraçavam os íngremes rochedos e com essa cadência da maré despertávamos, acariciados pelos raios da manhã que entravam pelas vidraças da varanda, abraçavas-me e levantavas-te com a promessa de um café e de um beijo. Em cima da velha cómoda azul havia um vaso de alfazema perfumada, que se misturava com a maresia e me embriagava de odores matinais. Via-te chegar com uma chávena de porcelana branca na mão e o sorriso de quem não se preocupa com os dias que hão-de vir. Era de dia que das brasas nasciam cinzas que voavam pela janela como pássaros livres, era o bater de asas dos sonhos que tecemos acordados entre as margens dos lençóis. A agitação chegava e eu distraía-me com ela, certa de que sempre que olhasse para a porta encontraria uma chávena e um sorriso com cheiro a alfazema e maresia.
Disseste…
Que as pedras da Praça 5 de Outubro eram corpo celeste
Que brilhava mais quando respirávamos sorrisos
E caminhávamos de almas levantadas pelos ventos da noite
Arrojados pelas ruas de sentidos que nos espreitavam em cada esquina
Ali … onde havia dias feitos de letras tecidos por uma Penélope expectante
Desfeitos nos murmúrios da noite na esperança de um regresso
(Um novo livro, talvez…?)
Chegava equilibrada na linha de ferro que nos unia nas distâncias
Vinha com a elegância da capital espalhada pelo corpo
Ali … largava a um canto reminiscências de uma outra vida
Despida pelos sons que me percorriam a medula
(Já não era outra, era eu…)
Embriagada pelos risos fluidos numa pista de dança
Onde partilhávamos garrafas de alegria e palavras ao ouvido
Tu disseste…
Que os regressos se teciam na memória de quem não esquece
Que outras noites desceriam continuamente o Almonda
E girariam como o destino na tarambola à margem da pedra
Onde pousámos os copos vazios
horas antes erguidos
Às memórias dos sonhos por vir
Amanhecíamos nas ausências prolongadas que preenchemos
Com alguns minutos de olhares em silêncio
E fotografias guardadas no disco rígido das máquinas
Interrompíamos a ordem com gargalhadas
Que fariam desta ... todas as outras madrugadas!
DV
Um elogio à desordem e à transgressão, que não é apenas estar à margem do que é útil, é ser a margem entre o sentido comum e as ambivalências sensoriais que encontram um espaço obscuro e privilegiado na literatura, esse ponto de ruptura que a torna inútil e livre do tempo comum onde a vida se esgota na construção da possibilidade, e que a remete para uma outra dimensão temporal, numa viagem extraordinária e infantil que não tem qualquer destino.
Como nos diz Godard «Cultura é a regra, arte é a excepção»[1]. A excepção é esta singular pluralidade de existência maldita e soberana que desloca, reinventa e liberta das pesadas estruturas sociais e dos inerentes condicionalismos da condição humana. Só o diabo pode ser livre do movimento castrador da mão de Deus.
Não quero acreditar em utopias, quero ter ideais, quero saber como se cria essas coisas sem nome que nos desagregam a alma, lá onde ela está agregada, apegada, colada, agarrada às coisas de sempre, que não fazem sentido, nem fazem nada, que não são estrada, nem são escada, e que nos prendem como se fossemos quadros de pó nas costas de uma parede.Quero ter ideais e ser pó, sem quadro fixado, pregado, agregado, quero voar desapegada das coisas. Quero ser o homem que viajou de mota para outros sentidos sítios e, quando voltou já não era ele e a terra onde nasceu já não era sua, não porque não estivesse no lugar, todas as terras são quadros, mas ele já era pó. E voou até outra terra onde vo(lt)ou a ser homem.Quando crescemos há lugares que ficam mais pequenos, e então vamos para sítios maiores que nos engolem ou nos agigantam.
Dizem que procurou as minas do rei Salomão em África, até ter posto os olhos no céu. Depois mataram-no e cortaram-lhe as mãos, porque é com as mãos que os homens fazem coisas, mas aquelas mãos sem homem já não faziam nada. Sepultaram-no e ele foi pó. E voou, voou, voou. Os ideais continuaram a respirar noutras vozes, porque os ideais não precisam de mãos para fazer coisas, precisam de Homens. Voou e foi céu vermelho (todos os Homens olharam para cima). Quero ter ideais, desses que nunca morrem e que fazem homens céu. Quero voar desta sensatez muda, que escuta e observa, que nada agita. Não há manifestações pacíficas.
Deixa-me partilhar do teu silêncio e aconchegar os teus gritos no calor dos meus lábios. Deixa-me amanhecer-te, entardecer-te e anoitecer-te numa página em branco, onde dançam os deuses e demónios dos livros que lemos naquela tarde de verão que permanece intacta no cheiro dos nossos corpos ausentes. Deixa-me amor ser o teu campo de batalha onde procuras a paz da infância sensorial e vívida, onde colhias papoilas rubras e malmequeres em cenários oníricos, e com elas desenhavas sonhos que havias de contar-me mais tarde. Era sempre tarde para o encontro do desejo que as ausências engrandeciam, e tu esperavas-me entre cigarros breves e minutos demasiado demorados, a olhar o curso contínuo do rio onde haveríamos de beber madrugadas e auroras por vir. Falavas-me das palavras que te tinham escolhido, para te dizeres à minha chegada, e de como a linguagem era imperfeita e ineficaz para te definires enquanto me esperavas, e eu pedia-te que me lesses uma passagem do livro que trouxeste para enganar os minutos onde eu não estava. E tu lias, e eu ouvia, falavas sempre de liberdade e dos homens feitos de céu que a procuravam, eu ouvia e voava entre as margens onde tínhamos ancorado os medos de uma história por contar.
Todas as palavras eram equívocos que deitávamos à água, náufragas dos sentidos que lhes dávamos, desciam o rio ajudadas pelo vento como os pequenos barcos de papel da minha infância que os meus dedos pequeninos dobraram antes de te conhecerem, antes de existirem para te tocar, antes de existirem para os teus lábios os tocarem. Beijavas-me as mãos, e os teus lábios eram terras quentes de perfumadas flores exóticas que eu guardava entre as páginas do meu diário. Enganávamos Saturno e a ordem natural das coisas, num silêncio desordenado que soprava continuamente e nos emaranhava os cabelos, e éramos solene fogo ardente onde nos consumíamos até sermos a brasa com que acendíamos cigarros de despedidas fumadas entre beijos e movimentos das nossas mãos eloquentes que nos diziam tudo o que precisávamos saber sobre o poder da oratória silenciosa de quem numa tarde de verão se fez poesia de asas longas, que se abriam ao horizonte dos olhares que trocávamos. A fortuna girava determinada em mudar-nos a corrente, nós girávamos com ela sem resistir e ignorávamos o destino que nos pudesse trazer, por existirmos além matéria, além-mundo, onde nem deuses nem demónios nos podem alcançar. Riamos das preocupações da vida, como num jogo infantil, espontâneo momento sem finalidade, como a viagem inacabada de paisagens que desenhaste nas minhas costas viradas ao calor do teu corpo, onde me atracavas e desancoravas à liberdade das marés revolucionárias onde eu me fiz manifestação e tempestade.
P.S. Para a mãe que eu sei ter muitas saudades das coisas que a Maria das Quimeras escrevia. Anda uma mãe a alimentar uma filha a poesias e utopias, para depois ela só escrever disparates que ninguém entende, e que germinaram de leituras tão arrebatadoras que levaram todos os meus demónios a um suicídio colectivo.
A vida repete-se, vai como de costume, com a habitualidade dos bons dias com cheiro a pão quente. Dobro esquinas idênticas, simetrias habituais, calcorreio as calçadas todas elas sempre iguais. Afirmo solenemente, na prosa nunca há rima. Ri … mas logo de seguida fiquei nostálgica, cheia de saudades portuguesas das minhas constantes incertezas. Na prosa nunca há tristezas, nem liras, nem corvos nem violinos. Vai tudo em linha recta, sem linha torcida, é ponto final, cruz, linear, sem reticências. É um conjunto de coerências, uma espécie de bordar, a agulha entra por um lado, sai por outro, ponto arrematado, pela frente bonitinho, atrás tudo enleado, como a vida. A prosa é a vida, a poesia é a linha cortada. Interrompida. Tenta lá dizer bom dia com poesia, é tudo diferente, sem cheiro a pão quente, ou a coisas habituais. Cheira a cinzas de amores passados, crimes premeditados, pássaros fúnebres esborrachados no vidro do carro em andamento. É tudo sofrimento, mesmo quando não é, é sempre um fingimento superior, toda a acção se crava como lâminas aguçadas no peito do sujeito. Eu Lírica. Morte, renascimento, latejar poético das artérias mirradas, bate leve, levemente, formigueiro, pé dormente, sempre incomodativo como a dor de um dente. Li que a prosa não deve rimar, e só para contrariar… nasci - Do contra, contramão, contratempo, contraversão, contraste, contra senso.
Alice buraco dentro, agora pequena, agora grande, propensa a quedas, inconstantemente flexível. Está tudo do outro lado do espelho, fecho os olhos para ver. Se for uma porta é prosa, se for uma janela é suicídio, poesia em movimento, das portas não caem corpos, ninguém se atira de uma porta, ninguém se comove com uma porta, não têm terror, nem tragédias. Ou têm? Pintaram as portas em tons de suicídio, dentro delas germinam janelas, vertigens poéticas com cantos de sereias que entoam abismos a deuses hiperbólicos que devoram eufemismos. A queda é sempre inevitável às fatais possibilidades. Experimenta, vai à janela e imagina o teu corpo rebentado no chão, o rasto de sangue a aquecer as pedras do caminho que não fizeste, os corvos a arrancarem-te os olhos que desviaste, o teu corpo surdo ao grito dos desconhecidos que ali estão. Sentes terror? Sentes compaixão? Agora olha o céu. Sentes-te vivo? Sentes gratidão? Isso é poesia. Prosa é a vida, a poesia não!
O sujeito lírico caiu numa encruzilhada da madrugada, foi visto repetitivamente a saltar de janelas sedutoras, só para provocar a própria comoção. Levantava-se figura de estilo com Ironia dizia: - A prosa é vida, a poesia não. Se uns procuram a meia laranja, eu procuro o meu meio limão.
Imagem: Saturno devorando a un hijo - Francisco de Goya